Nº1
DOSSIER
LIXO:
LIXO:
UM
DEPÓSITO DE INDIFERENÇA
Como é que a política da cidade afeta a gestão de resíduos e os direitos dos trabalhadores?
MARÇO, 2024
A cidade
é assim:
um depósito de consumo, brilho,
velocidade. Como território central nas sociedades pós-industriais, é o espaço por excelência da competição.
Desta resulta forçosamente um vencedor e um vencido – vencido esse que se vê votado ao depósito, não raro, na periferia.
Com massificação do turismo nas cidades europeias, essa necessidade de limpar, embelezar, envernizar, em suma, higienizar, saiu reforçada:
é certo que, por um lado, o volume de resíduos produzidos pelo concelho do Porto não sofreu oscilações
significativas nos últimos dez anos
(ronda os 5 milhões de toneladas por ano, dados da Lipor);
por outro, as motivações estéticas do espaço público passaram a ser mais condicionadas pelo binómio centrífugo gentrificação-turismo.
Deste modo, o dossier inaugural d’ A Sementeira procura incidir sobre um dos ângulos mortos deste projeto de cidade: o lixo.
Quem o recolhe?
Quem o trata?
Para onde vai?
O que é reciclado?
O que é queimado?
Como vivem, que preocupações, anseios e ambições têm os trabalhadores do setor?
Como encaram os residentes e os visitantes esta questão, tantas vezes tomada a priori como garantida?
Em comum às diferentes pesquisas feitas para este dossier, denotamos um depósito de indiferença: assumimos que o lixo será recolhido, ainda que não saibamos bem por quem nem para onde vai e o que lá é feito, e talvez prefiramos não querer saber. O lixo é despejado juntamente com o despejar do problema do lixo, como se de um ilusionismo mental e territorial estivéssemos a falar.
"Lixo: um depósito de indiferença" apura a transversalidade da indiferença enquanto a procura e explora nas dimensões que provocam esse ilusionismo: é aqui que questionamos «Sobre o Esquecimento», um ensaio que trata a invisibilidade do lixo e de tudo aquilo que envolve a questão: a tendência de se deixar o lixo à margem, material e metafisicamente.
Longe da vista, tem-se a ilusão de que ele desaparece, quando apenas muda de lugar ou forma. A maior parte avoluma-se em aterros distantes dos centros urbanos, uma outra boia nos oceanos e outra paira, invisível, na atmosfera, em forma de gases de efeito estufa. Se o ângulo ecológico do lixo se encontra suficientemente problematizado, o mesmo não acontece relativamente a uma abordagem psico-sociológica. Talvez pela dimensão imensurável, a sua acumulação constitui uma das grandes aporias de um projeto de planeta pretensamente global que subitamente fica do tamanho do nosso campo de visão, na hora de preferir não ver e não saber.
Questionamos, ainda:
«Com mais reciclagem, de que se alimentariam os megaincineradores do país?» – um artigo que explora a prevalência da incineração sobre a reciclagem, contrariando as diretrizes oficiais (nacionais e europeias) para a segunda. Esta é uma meta comunitária e, a cada cinco anos, há um novo plano nacional para fazê-la acontecer. No entanto, entre plano e execução o objetivo perde-se (perverte-se): muito lixo com potencial para ser reciclado acaba por ser queimado. Finalmente, «Acordados da Noite» é uma série na qual, por intermédio dos olhos de dois cantoneiros – figuras incumbidas de manter o limpo, e daí também metáfora para este movimento centrífugo, que escoa para longe aquilo que parece tingir a ilusão de asseio desejável ao centro –, trazemos as pressões, as agressões tácitas e mais ou menos subtis, as transgressões legais, o jogo de forças que explora e vulnerabiliza estes trabalhadores – sobretudo desde o reforço da privatização do sector, em 2017, da qual resultou uma assimetria no que toca aos direitos e garantias laborais, nas maneiras de se percepcionarem uns aos outros dentro da própria empresa.
Falamos de como esta assimetria veio fomentar ainda mais este espaço de conflito que se traduz num permanente clima de violência simbólica, repressão e medo.